quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Tragedia no Rio de Janeiro

Hospitais do Rio recebem primeiro lote de insumos doados pelo governo federal
  • 24/12/2015 14h41
  • Rio de Janeiro
Akemi Nitahara - Repórter da Agência Brasil*


Medicamentos e material hospitalar doados pelo governo federal chegam ao RioFernando Frazão/Agência Brasil

Após decretar estado de emergência na saúde na noite de quarta-feira (23), o governador do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão, recebeu nesta manhã, no Hospital da Lagoa, material médico doado pelo Ministério da Saúde.

Um caminhão com o primeiro lote de insumos foi levado para o Hospital Getúlio Vargas, na Penha, de onde o material também será distribuído para os hospitais Adão Pereira Nunes, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, e Alberto Torres, em São Gonçalo, na região metropolitana. No total, o ministério vai doar R$ 20 milhões em produtos destinados à saúde para o governo do estado.

Segundo o futuro secretário de estado de Saúde, Luiz Antonio de Souza Teixeira, que está comandando o gabinete de crise instituído ontem e assume oficialmente a secretaria em janeiro, serão divulgados boletins diários a partir de amanhã (25) para informar a população sobre o andamento das ações emergenciais e sobre que unidades as pessoas podem procurar quando precisarem de atendimento.

“Vamos passar, todos os dias, a real situação das unidades. Nossa primeira preocupação é a retomada das emergências hospitalares. Já temos as maternidades em pleno funcionamento e a grande maioria das UPAs [unidades de pronto-atendimento] com o seu atendimento. A partir do gabinete de crise, qualquer esforço que a gente tiver, a gente vai usar qualquer recurso. A gente não vai reservar nada para amanhã, para a Olimpíada, para qualquer evento: ttudo que a gente tiver vai estar na rua, à disposição da população”, afirmou Teixeira.

Reestruturação do setor


O futuro secretário disse que é preciso rever a rede de saúde do estado para readequá-la à atual situação financeira. “Precisamos de um novo modelo de saúde no Rio de Janeiro, que caiba na condição financeira do estado. O estado do Rio tinha uma condição financeira e formou uma rede espetacular, institutos especializados, unidades de pronto-atendimento, hospitais de porta aberta, e precisamos hoje que isso caiba na nossa realidade financeira. Vamos readequar o que o estado do Rio de Janeiro tem de recurso para o que vamos prestar de serviço, privilegiando o atendimento de emergência.”


Ao  lado  do  secretário  de  Atenção  à Saúde, Alberto Beltrame, Pezão diz que será possível entrar em 2016 com  tranquilidade   Fernando Frazão/Agência Brasil

De acordo com o governador, em uma semana, os pagamentos atrasados estarão em dia, e o atendimento deve estar normalizado em toda a rede após o estado receber uma ajuda de R$ 300 milhões. “Ontem, começamos a pagar – é claro que os recursos não entram imediatamente na conta das pessoas – mas as organizações sociais [OS] já estão começando hoje a pagar os enfermeiros, os médicos." Pezão disse esperar que, a partir de segunda-feira, todos os pagamentos estejam normalizados. "Não é o ideal, mas o mínimo que nos pediram para a rede funcionar. Conseguimos ir além do mínimo e colocar o dobro do que foi pedido, mas ainda está longe do ideal.”

Para o governador, será possível entrar em 2016 com tranquilidade e atendendo a população, embora haja necessidade de reorganizar a rede de saúde no estado.

Ele informou que pediu um encontro com o secretário de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde, Alberto Beltrame, o ministro Marcelo Castro, o prefeito do Rio, Eduardo Paes, os prefeitos da região metropolitana, considerando a competência de cada um. "O estado não vai fugir da sua responsabilidade, mas vai se dedicar especialmente à média e à alta complexidade, que são obrigações do estado. Quero definir muito isso em 2016, logo nos primeiros dias de janeiro”, afirmou Pezão.

Na entrega do material, o secretário Beltrame informou que serão passados para o estado cerca de 300 mil itens de material de consumo variado, como luvas cirúrgicas, esparadrapo, agulhas e próteses ortopédicas. Ele disse que o ministério também vai colaborar com a reestruturação da rede estadual. “[A entrega dos insumos] é uma forma de dar concretude a esse auxílio que, além de financeiro, é técnico e material. Estamos solidários com o povo e com o governo do estado e nos colocando à disposição inclusive para auxiliar tecnicamente na reorganização, na reestruturação da rede de saúde do estado."

Os hospitais federais instalados no Rio de Janeiro, que dispõem de 1.500 leitos para ajudar no atendimento à população, receberam, até o momento, 25 pacientes que estavam internados na rede estadual.
Ao todo, a saúde do Rio de Janeiro vai receber, nas próximas semanas, R$ 100 milhões por meio de convênio firmado com a prefeitura da capital, R$ 135 milhões do Ministério da Saúde, divididos em três parcelas. e R$ 152 milhões de receita prevista do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS).

O gabinete de crise volta a se reunir hoje (24), e a situação de emergência têm prazo de 180 dias.
*Colaborou Nanna Pôssa, repórter do Radiojornalismo
Edição: Nádia Franco


sábado, 5 de dezembro de 2015

O incrível modelo do nosso cerebro

O cérebro sujeito ao tempo


Mesmo sem alterações patológicas, envelhecimento provoca uma reorganização do funcionamento da mente
RICARDO AGUIAR | ED. 237 | NOVEMBRO 2015


Exercícios físicos, além de uma vida intelectualmente estimulante, ajudam a manter a juventude cerebral










Assim como a pele ganha rugas e os cabelos ficam brancos, o cérebro muda conforme a pessoa envelhece. São alterações estruturais e também funcionais, na forma como as diferentes regiões desse órgão se comunicam e relacionam. Resultados publicados na revista Cerebral Cortex ajudam a caracterizar essas mudanças. “Observamos que o cérebro passa por um processo de reorganização”, explica Geraldo Busatto Filho, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), um dos autores do artigo. “Funções mentais importantes exigem integração e sincronia entre diferentes áreas.”

Luiz Kobuti Ferreira, autor principal do estudo e também da FM-USP, conta que o estudo avaliou pareamentos entre 278 regiões do cérebro inteiro. Entre os três mais importantes resultados do trabalho, realizado com ressonância magnética funcional, está o aumento da associação, em idosos, entre áreas de funções diferentes que não precisariam se comunicar para realizar as respectivas tarefas. O exame, que permite ver o cérebro em funcionamento, mostrou que a área responsável pela visão, por exemplo, tem conexão fraca com aquela relacionada ao raciocínio lógico em jovens e adultos. Entretanto, conforme a idade aumenta, essas áreas passam a funcionar mais em conjunto.

“Uma das teorias sobre isso diz que certas regiões cerebrais não conseguem exercer sua função tão bem quanto antes e recrutam outras áreas como forma de compensação, o que leva a uma perda de especialização”, diz Ferreira. Esse tipo de funcionamento pode deixar o cérebro mais suscetível a ruídos, dificultando a execução de tarefas que exigem atenção ao mundo externo. Como os idosos avaliados eram saudáveis e não apresentavam problemas cognitivos, também é possível que a maior conexão entre diferentes áreas esteja relacionada à maior experiência de vida e aprendizado.

Outra diferença entre o cérebro de jovens e de idosos é uma perda de sincronia entre regiões. Durante a infância e a adolescência, algumas redes cerebrais começam a se comunicar mais entre si e passam a ficar ativas simultaneamente, enquanto regiões com funções diferentes podem fazer o processo contrário: se uma delas está ativa, a outra não está. Um exemplo são as regiões responsáveis pela atenção, ativadas diante de uma ameaça, e a Rede de Modo Padrão (Default Mode Network, em inglês), um conjunto de regiões ativo quando a pessoa está alheia ao mundo externo. Em uma parte dos idosos estudados a sincronia entre essas regiões, que é forte em jovens e adultos, fica reduzida.

Pares de regiões fortemente associadas entre si também podem se tornar menos conectadas em idosos. Essa observação foi constatada principalmente na Rede de Modo Padrão e corroborou estudos anteriores realizados com regiões específicas do cérebro.

Os achados complementam trabalhos anteriores do grupo de Busatto, que analisaram como o envelhecimento afeta o cérebro do ponto de vista estrutural. “O cérebro de idosos apresenta uma diminuição de volume que pode ser explicada por várias alterações, incluindo diminuição da densidade de conexões sinápticas, da atividade de neurotransmissores e perda dos prolongamentos dos neurônios”, diz ele.

Ainda não é motivo para se sentir derrotado. O processo de envelhecimento cerebral pode ser minimizado pela prática de exercícios físicos, por uma dieta saudável e por não fumar, além de estar bem psicologicamente e participar de atividades mentalmente estimulantes.

Outros grupos se concentram em compreender como se dá o envelhecimento não saudável do cérebro, como o de Carlos Alberto Buchpiguel e Daniele Farias, do Centro de Medicina Nuclear da USP, em colaboração com o grupo de Busatto. “Eles estão analisando pacientes com comprometimento cognitivo leve e estágio inicial de doença de Alzheimer, responsável por mais da metade dos casos de demência”, diz Busatto. “Está sendo usada a técnica de PET para fazer imagens do acúmulo de fragmentos do peptídeo beta-amiloide no cérebro para analisar, em conjunto com exames de ressonância magnética funcional, se esses acúmulos estão relacionados com mudanças nos padrões de conectividade cerebral”, explica, referindo-se a um tipo de tomografia que permite monitorar determinadas substâncias químicas no organismo.
Estudar o que acontece no cérebro em pacientes com Alzheimer é o objetivo também de Marcio Balthazar, da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM-Unicamp): tanto alterações estruturais e funcionais que ocorrem no cérebro como as semelhanças e diferenças entre o envelhecimento saudável e o patológico.

Balthazar observa que pacientes com Alzheimer, em comparação com idosos saudáveis, apresentam uma desativação menor da Rede de Modo Padrão durante a realização de tarefas voltadas para o mundo externo, o que resulta numa menor capacidade de atenção e concentração. Ele também detecta uma maior quantidade de conexões entre áreas do cérebro que exercem diferentes funções. Conforme a doença avança, o cérebro dos pacientes diminui muito mais de tamanho quando comparado a cérebros saudáveis, e deixa de recrutar outras regiões como forma de compensação.

Prevenir e remediar
Um dos principais desafios para Balthazar é encontrar métodos para detectar a doença de Alzheimer da maneira mais precoce possível. Uma ideia é unir os padrões de conectividade cerebral com o que já se sabe sobre a deposição da proteína beta-amiloide, principal responsável pela perda de conectividade e por problemas cognitivos na doença. “Nossos resultados mais recentes indicam que é possível utilizar níveis de beta-amiloide para predizer o grau de conectividade cerebral”, explica. Ele ressalta que a ideia de utilizar a proteína e imagens cerebrais como biomarcadores tem potencial, mas ainda precisa ser refinada para ser utilizada com sucesso na área clínica.

Outro objetivo é descobrir um tratamento eficaz para a doença de Alzheimer, que hoje não tem cura. O grupo de Balthazar estuda, atualmente, se o exercício físico – que ajuda a prevenir a doença – pode ter efeito também como tratamento. “Resultados preliminares indicam que exercícios físicos têm potencial para retardar não apenas o aparecimento, mas também a progressão da doença.”

Projetos
1. Recuperação de memória autobiográfica e envelhecimento cerebral: um estudo através de ressonância magnética funcional (nº 2011/00475-3); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Geraldo Busatto Filho (FM-USP);Investimento R$ 69.463,87.
2. Neurociência translacional da doença de Alzheimer: estudos pré-clínicos e clínicos do peptídeo b-amiloide e outros biomarcadores (nº 2012/50329-6); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Geraldo Busatto Filho (FM-USP);Investimento R$ 3.082.570,79.
3. Biomarcadores na doença de Alzheimer e comprometimento cognitivo leve: estudo de métodos de ressonância magnética funcional e marcadores liquóricos e plasmáticos (nº 2011/17092-0); Modalidade Jovens Pesquisadores; Pesquisador responsável Márcio Balthazar (FCM-Unicamp); Investimento R$ 226.940,05.
Artigo científico
FERREIRA, L. K. et alAging effects on whole-brain functional connectivity in adults free of cognitive and psychiatric disorders.Cerebral CortexOn-line. 26 ago. 2015.


domingo, 15 de novembro de 2015

Nossos preconceitos nefastos

Violência, medo e preconceito
Pesquisadores de várias áreas usam levantamentos históricos e testes de DNA para reaproximar famílias separadas pela hanseníase
RODRIGO DE OLIVEIRA ANDRADE | ED. 236 | OUTUBRO 2015









© EDUARDO CESAR

Aos 88 anos, Nivaldo Mercúrio vive no antigo hospital-colônia de Bauru desde os 17, quando foi internado após o diagnóstico de hanseníase
de Bauru






Nivaldo Mercúrio tinha 7 anos quando uma ambulância preta com a sigla DPL, de Departamento de Profilaxia da Lepra, parou em frente à sua casa, em um sítio em Itápolis, interior de São Paulo. Dois médicos desceram e pediram para examinar toda a família. “Descobriram que minha mãe tinha hanseníase, a antiga lepra, e dias depois voltaram para levá-la”, ele relembra, aos 88 anos, enquanto caminha pelas ruas do antigo hospital-colônia Aimorés, hoje parte do Instituto Lauro de Souza Lima, em Bauru, um dos principais centros de atendimento a pessoas com hanseníase no estado de São Paulo. “Depois os médicos pediram para que eu, meu pai e meus irmãos fôssemos para a rua e puseram fogo em nossa casa.” Em 1933, a internação compulsória e a queima da casa das pessoas com hanseníase eram as formas adotadas para evitar que outras pessoas se contaminassem com a doença, vista com forte repulsa desde os tempos medievais.

Dez anos depois, Nivaldo recebeu o mesmo diagnóstico da mãe e foi levado para Aimorés, onde vive desde então, exceto por alguns meses em que tentou trabalhar em Itápolis. Sua mãe foi levada para outro hospital e ele nunca mais a viu. Estima-se que cerca de 40 mil pessoas tenham sido separadas de suas famílias por causa das estratégias de isolamento adotadas como forma de tratar a hanseníase. O desafio agora é tentar reaproximar as famílias separadas à força. Desde 2011, uma equipe da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) trabalha com o Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan), organização não governamental sediada no Rio de Janeiro, para fazer com que familiares de pessoas com hanseníase que há muito não se viam ou sequer se conheciam se encontrem.

© EDUARDO CESAR
Igreja e coreto dos anos 1950 preservados pelo Instituto Lauro de Souza Lima, em Bauru

A hanseníase é uma doença transmissível por meio do contato com secreções nasais, tosses ou espirros de pessoas infectadas. Por muito tempo conhecia-se apenas seu agente causador, a bactériaMycobacterium leprae, identificada pelo médico norueguês Gerhard Hansen em 1873, que atinge os nervos e gera manchas esbranquiçadas ou avermelhadas na pele. Antes incerto, o tratamento hoje é simples, gratuito e eficiente, à base de sulfona e outros dois medicamentos, rifampicina e clofazimina, sem a necessidade de internações compulsórias. No entanto, o Brasil é o segundo país em número de casos da doença no mundo, atrás apenas da Índia. Em 2014, o Ministério da Saúde registrou 31.064 novos casos.

Pequenas cidades

Os hospitais-colônia, que funcionaram dos anos 1930 a 1980, eram pequenas cidades, com igreja, delegacia, presídio e prefeitura. Seus ocupantes plantavam, cozinhavam e faziam pequenas transações entre eles usando uma moeda própria, chamada lazareto, em referência aos primeiros hospitais-colônia surgidos na Ilha de San Lazzaro, perto de Veneza, na Itália, em meados do século XIII. “Uma vez internados, os doentes só saíam dos leprosários com autorização dos médicos, o que raramente acontecia”, conta a médica Lavínia Schuler-Faccini, professora da UFRGS e uma das coordenadoras do Instituto Nacional de Genética Médica e Populacional (Inagemp), sediado em Porto Alegre.

“A maioria dos que nos procuram são filhos de pessoas com hanseníase querendo encontrar os irmãos, já que os pais muitas vezes estão mortos”, diz Artur Custódio, presidente do Morhan, fundado em 1981 por ex-internos de hospitais-colônia, que hoje atende pessoas à procura de seus familiares. O trabalho integrado de médicos, historiadores, antropólogos e sociólogos permitiu às equipes de Porto Alegre e do Rio reaproximar 800 pessoas, por meio de visitas a antigos hospitais-colônia e consultas a arquivos para atestar o parentesco. “Quando as informações encontradas nos documentos não são suficientes, aplicamos o teste de DNA”, explica a bióloga Flávia Costa Biondi, da equipe da UFRGS. Pais e filhos que se reencontram, porém, raramente voltam a viver juntos. “Em geral os filhos não conseguem reconhecê-los como pais ou mães. O isolamento os fez completos desconhecidos”, diz Lavínia. Algumas histórias são dramáticas, como a de um homem que queria saber do pai internado havia décadas em um leprosário do Acre. Meses depois a equipe do Morhan o localizou, mas ele tinha morrido fazia poucas semanas.

Estima-se que 25 mil crianças tenham se tornado órfãs de pais vivos internados em hospitais-colônia, principalmente nas regiões Norte e Nordeste. As crianças que nasciam nos leprosários ou não tinham com quem ficar eram levadas para os preventórios, como eram chamados os orfanatos para filhos de pessoas com hanseníase, às vezes em outras cidades. “Os médicos diziam às mulheres que seus filhos tinham morrido no parto, quando haviam sido dados para adoção”, relata Lavínia. Em 1943, os 22 preventórios do país abrigavam cerca de 2.500 crianças, que depois eram entregues para parentes ou desconhecidos dispostos a criá-las. Não era fácil encontrar quem as adotasse, porque se temia que as crianças estivessem contaminadas e pudessem transmitir a doença.

Registro de uma tentativa de fuga de um dos internos

Depois de examinar cerca de 10 mil fichas preenchidas por filhos de pessoas isoladas em leprosários do país, a equipe do Morhan verificou que muitas crianças adotadas eram forçadas a trabalhar, sofriam maus-tratos e eram discriminadas por serem filhos de pessoas com hanseníase. Por meio desses documentos, os pesquisadores também identificaram rotas de saída de crianças para adoção. “Muitas crianças do norte de Minas Gerais foram enviadas para a Itália e, do sul do Pará, por meio do Suriname, para a Holanda”, diz Custódio. Em julho, a equipe do Morhan localizou na Holanda dois irmãos, filhos de brasileiros que tiveram hanseníase e ainda estão vivos.

O projeto coordenado pela equipe da UFRGS e do Morhan inspirou-se na busca de crianças e pais desaparecidos durante o governo militar da Argentina (1967 a 1983). Estima-se que, à época naquele país, 500 crianças tenham nascido de mães presas que depois desapareceram. Em geral, elas eram integradas às famílias de militares e, às vezes, registradas como filhos biológicos dos pais adotivos. “Mas há também casos de bebês abandonados em instituições religiosas ou em esquinas de Buenos Aires”, diz a antropóloga Claudia Lee Williams Fonseca, da equipe da UFRGS.

Custódio defende que os filhos — e não apenas os pais — sejam indenizados pelo Estado brasileiro, que continuou a isolar pessoas com hanseníase até 1986, mesmo tendo assinado, em 1952, um acordo internacional comprometendo-se a interromper as internações compulsórias depois da descoberta de tratamentos eficazes para a doença. Na década de 1940, a sulfona começou a ser usada no tratamento da hanseníase no Brasil, que seguiu outros países, permitindo que as pessoas fossem tratadas apenas por meio de visitas periódicas a hospitais, não precisando mais serem isoladas. Em 2007, uma Medida Provisória aprovada pelo Congresso Nacional concedeu pensão vitalícia às vítimas da doença que continuaram a ser isoladas até 1986.

Pessoas com hanseníase recém-chegadas em vagões fechados ao hospital-colônia Aimorés na década de 1930

Isolamento
A internação compulsória foi adotada no Brasil como estratégia para o controle da hanseníase a partir de 1924 e ganhou força na década de 1940, durante o governo Getúlio Vargas, com o Plano Nacional de Combate à Lepra, que previa o isolamento compulsório de todos os casos confirmados e o cuidado e a educação dos filhos sadios das pessoas doentes. “Como não havia nenhum medicamento eficaz”, diz Claudia Fonseca, da UFRGS, “o isolamento das pessoas com hanseníase era considerado essencial, tornando-se mais importante que o próprio tratamento existente”.

Na década de 1920, as pessoas com hanseníase vagavam pelas ruas das cidades ou postavam-se à margem das estradas à espera de esmolas de viajantes, que os evitavam, porque se pensava que até o ar poderia estar contaminado. “Os doentes viveram em completo abandono por décadas no Brasil”, diz o médico Marcos Virmond, diretor do Instituto Lauro de Souza Lima, que atende cerca de 2 mil pessoas todos os meses. O instituto ainda preserva prédios, a igreja, o cassino, transformado em museu, as ruas de paralelepípedos e as praças repletas de árvores do antigo hospital-colônia Aimorés. Em São Paulo, o primeiro asilo desse tipo foi o Santo Ângelo, construído em Mogi das Cruzes, em 1928, onde, no arco da entrada principal, lia-se “Aqui renasce a esperança”.

Em 1943, os 41 hospitais-colônia espalhados pelo país abrigavam 17 mil pessoas, que, uma vez internadas, precisavam encontrar novas formas de sobrevivência para não se abater pelo isolamento. “As pessoas, privadas de direitos básicos de cidadania, eram vigiadas, controladas e governadas por leis específicas”, diz Claudia Fonseca. A década de 1940 foi uma época de combate intensivo à doença, avalia Virmond. As pessoas suspeitas de estarem infectadas eram denunciadas às autoridades sanitárias e perseguidas nas ruas e em suas casas. Em seguida, eram isoladas nos hospitais-colônia. Em Aimorés, os doentes detidos pela polícia sanitária eram transportados em vagões especiais de trens até o hospital.

Na década de 1920, quem tinha hanseníase vivia em acampamentos como este, à margem de uma estrada próxima a Bauru

A rejeição às pessoas com hanseníase não vem de hoje. A doença é considerada uma das mais antigas da história da humanidade — ainda que por séculos muitas doenças dermatológicas fossem confundidas com lepra. “Há registros de casos de pessoas queimadas vivas em suas casas na Idade Média, na Europa”, diz a socióloga Glaucia Maricato, da UFRGS. A aparência das pessoas com a doença, que causa deformações, somada ao medo do contágio, motivava os europeus a manter os pacientes em asilos, os lazaretos, ou expulsá-los das cidades. A hanseníase, mais do que qualquer outra, era vista como uma doença impura. Veio daí a ideia de que a maldade era uma das características do portador. “Os homens daquele tempo estavam persuadidos de que no corpo reflete-se a podridão da alma”, escreveu o historiador francês Georges Duby no livro Ano 1000 ano 2000: na pista de nossos medos. “O leproso era, só por sua aparência corporal, um pecador. Desagradara a Deus e seu pecado purgava através dos poros.”

A visão medieval da doença perdurou até o século XX, segundo a historiadora Yara Nogueira Monteiro, do Instituto de Saúde de São Paulo. Em um artigo publicado na revista Saúde e Sociedade, ela analisou como o isolamento compulsório das pessoas com hanseníase no estado contribuiu para que o estigma da doença atingisse pessoas sadias. De modo geral, ela observa, a internação de um dos pais acarretava a chamada explosão familiar. Quando a notícia de que alguém tinha hanseníase se espalhava, era comum que parentes próximos perdessem o emprego e as crianças fossem expulsas da escola. Esse efeito cascata, segundo ela, contribuiu para que os doentes fossem deixados ainda mais à margem da sociedade.

Foi o que aconteceu com Nivaldo Mercúrio. Em 1968, curado, ele deixou o hospital-colônia, voltou para Itápolis e arrumou um emprego. Semanas depois, porém, outros empregados exigiram do dono da empresa que ele fosse demitido porque vinha de um leprosário. Ele exibia os sinais de seu passado: suas mãos haviam atrofiado e falava com dificuldade, em consequência do tratamento com óleo de chaulmoogra, usado antes da sulfona. “Fui demitido e, meses depois, voltei para cá”, ele conta. O antigo hospital-colônia de Aimorés abriga hoje 74 pessoas que, como ele, um dia tiveram hanseníase.

Artigos científicos
FONSECA, C. L. W. et al. Project REENCONTRO: ethical aspects of genetic identification in families separated by the compulsory isolation of leprosy patients in BrazilJournal of Community Genetics. v. 6, 3, p. 215-22. jul. 2015.
PENCHASZADEH, V. B. & SCHULER-FACCINI, L. 
Genetics and human rights. Two histories: Restoring genetic identity after forced disappearance and identity suppression in Argentina and after compulsory isolation for leprosy in Brazil.Genetics and Molecular Biology. v. 37, p. 299-304. mar. 2014.
MONTEIRO, Y. N. Violência e profilaxia: os preventórios paulistas para filhos de portadores de hanseníaseSaúde e Sociedade. v. 7, n. 1, p. 3-26. 1998.


sábado, 3 de outubro de 2015

Doenças cardiopulmonares e os morcegos



Possíveis reservatórios do hantavírus
Pesquisadores identificam anticorpos contra vírus em morcegos de diferentes espécies
RODRIGO DE OLIVEIRA ANDRADE | Edição Online 0:20 29 de setembro de 2015













 Morcegos de São Paulo e Minas Gerais apresentaram anticorpos específicos contra nucleoproteína recombinante do hantavírus










Morcegos brasileiros de espécies e hábitos alimentares distintos, e não apenas aqueles que se alimentam de insetos, podem estar servindo como reservatório do hantavírus, causador de doenças cardiopulmonares e outras complicações. Em um estudo publicado na revista The American Journal of Tropical Medicine and Hygiene, um grupo internacional de pesquisadores sob coordenação do biólogo Gilberto Sabino-Santos Jr, do Centro de Pesquisa em Virologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), analisou morcegos de várias espécies que se alimentam de frutas, carne e sangue. Ao todo, capturaram 270 animais entre fevereiro de 2012 e abril de 2014 em São Paulo e no norte de Minas Gerais. Destes, 53 tiveram amostras de sangue colhidas para análises.

Os pesquisadores verificaram que nove deles tinham anticorpos específicos contra a nucleoproteína recombinante do hantavírus Araraquara, variedade assim chamada em referência à cidade do interior paulista, onde foi encontrada pela primeira vez em 1995. O resultado, segundo eles, é preocupante, dada a diversidade desses mamíferos no país. “Os resultados também sugerem que esses animais tiveram contato com o vírus em algum momento e, portanto, estariam servindo de reservatório do hantavírus”, diz Sabino-Santos. Até então, outros estudos sugeriam que só roedores e morcegos que se alimentavam de insetos poderiam abrigar o vírus.

Os roedores são os principais reservatórios naturais conhecidos do hantavírus, que os transmitem pela urina, saliva e fezes. No Brasil, o rato-de-rabo-peludo (Necromys lasiurus) é o principal transmissor do vírus. O mesmo roedor também é responsável pela disseminação do protozoário Leishmania (Viannia) braziliensis, causador da leishmaniose tegumentar americana, a forma mais comum de leishmaniose em seres humanos no território nacional (ver Pesquisa FAPESP nº 101).

Os diversos tipos de hantavírus representam um grave problema de saúde pública, principalmente em países em desenvolvimento como o Brasil. De 1993 a 2012, o país registrou um total de 1.573 casos de síndrome pulmonar causada pelo hantavírus, com uma taxa de letalidade de 39%. Os indivíduos infectados têm febre alta e sintomas semelhantes a um resfriado comum, o que aumenta os riscos de transmissão para outras pessoas. No entanto, a doença pode rapidamente evoluir para um edema pulmonar e insuficiência respiratória.

“O papel desses animais enquanto reservatórios de hantavírus ainda não foi totalmente esclarecido”, explica Sabino-Santos. ”O potencial impacto de morcegos infectados na transmissão do vírus para humanos precisa ser mais estudado.” Para verificar se de fato os morcegos funcionam como reservatórios naturais do hantavírus, o grupo de Sabino-Santos pretende avaliar o genoma do vírus nas fezes e na urina dos animais. “Queremos tentar detectar o vírus nos tecidos de pulmão, coração e rim. Se o vírus for encontrado nesses tecidos, e se o estiverem excretando nas fezes e na urina, então teremos um forte indício de que os morcegos são reservatórios naturais de hantavírus e podem transmitir a doença para humanos.” A transmissão se dá pelo contato com a urina, fezes ou saliva do morcego. Essas situações podem ocorrer em regiões rurais e sem saneamento.

Projeto
Detecção e ecologia de hantavírus em pequenos mamíferos selvagens e em seus ectoparasitas (nº 11/06810-9); Modalidade Bolsas no país – Doutorado; Pesquisador responsável Luiz Tadeu Moraes Figueiredo Bolsista Gilberto Sabino dos Santos Junior (FMRP-USP); Investimento R$ 155.882,0 (FAPESP). Artigo científico
Sabino-Santos Jr, G. et al.
Evidence of Hantavirus Infection among Bats in Brazil. The American Society of Tropical Medicine and Hygiene. v. 93, n. 2, p. 404-6. ago. 2015.